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Talvez o último desejo

Pergunta-me com muita seriedade uma moça jornalista qual é o meu maior desejo para o próximo ano. E a resposta natural é dizer-lhe que desejo muita paz, prosperidade pública e particular para todos, saúde e dinheiro aqui em casa. Que mais há de dizer ?
Mas a verdade, a verdade verdadeira que eu falar não posso, aquilo que representa o real desejo do meu coração, seria abrir os braços para o mundo, olhar para ele bem de frente e dizer na cara: - TE DANE !
Sim, te dana mundo velho. Ao planeta com tosos os seus bichos, ao continente, ao país, ao Estado, à cidade, à população, aos parentes, amigos e conhecidos: - Danem-se ! Danem-se que eu não ligo, vou pra longe me esquecer de tudo, vou a Pasárgada ou a qualquer outro lugar, vou-me embora, mundo de nome paradeiro, quero ver quem é que me acha.
Isso que eu queria. Chegar junto ao homem que eu amo e dizer para ele: - Te dana, meu bem! Pode fazer o que entender, pode ir, pode voltar, pode pagar dançarinas, pode fazer serenatas, rolar de borco pelas calçadas, pode jogar futebol, entrar na linha de Quimbanda, pode amar e desamar, pode tudo, que eu não ligo!
Chegar ao respeitável público e comunicar-lhes: Danai-vos, respeitável público. Acabou-se a adulação, não me importo mais com as vossas reações, do que gostais e do que não gostais; nutro a maior indiferença pelos vosso apupos e os vossos aplausos e sou incapaz de estirar um dedo para acariciar os vossos sentimentos. Ide baixar noutro centro, respeitável público, e não amoleis o escriba que de vós se libertou!
Chegar junto da pátria e dizer o mesmo: o doce, o suavíssimo, o libérrimo te dana. Que me importo contigo, pátria? Que cresças ou aumentes, que sofras de inudação ou de seca, que vendas café ou compres ervilhas de lata, que simules eleições ou engulas golpes? Elege quem tu quiseres, o voto é teu, o lombo é teu. Queres de novo a espora e o chicote do peão gordo que se fez teu ginete? Ou queres o manhoso mineiro ou o paulista de olho fundo? Escolhe à vontade - que me importa o comandante se o navio não é meu? A casa é tua, serve-te, pátria, que pátria não tenho mais.
Dizer te dana ao dinheiro, ao bom nome, ao respeito, à amizade e aos amor. Desprezar parentela, irmãos, tios, primos e cunhados, desprezar o sangue e os laços afins, me sentir como filho de oco pau, sem compromissos nem afetos.

Um trecho da crônica de Rachel de Queiroz
 
Sobre as coisas # | TNB